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A história da profissão médica, no seu sentido mais amplo, acompanha a história da medicina. Compreende a componente cognitiva à volta do que cada médico individual definia como a sua profissão. É a história do conhecimento médico, da componente ética, regulando as relações entre praticantes e entre estes e pacientes, e as várias formas institucionais, especialmente escolas e sociedades, através das quais a medicina se propagou e perpetuou. Um tema recorrente através da história da profissão médica tem sido a tarefa de definir quem é um médico e quem não é, na base dos três pontos referidos, conhecimento, ética e organização institucional.

Médico Grego e o paciente

Médico grego e paciente.


Estatuto social dos praticantes médicos

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Galeno.

Segundo Vivian Nutton, a carreira de Galeno e os seus próprios pontos de vista de um médico ideal não podem ser tomadas como típicas para a maioria dos antigos praticantes médicos. Alguns autores recentes, como Harry Pleket e Fridolf Kudlien, examinaram em detalhe o estatuto dos praticantes médicos no mundo Helenístico e Romano e ambos têm mostrado o largo espectro de riqueza e cargos que alguns praticantes médicos detinham; um homem com uma linhagem de praticantes na família e com uma posição estável na comunidade local era tratado com maior respeito do que um médico "itinerante", andando de "mercado em mercado" a vender as suas mercadorias. Para Pleket, ao traçar paralelos com outras actividades, colocava-se o médico num nível baixo, acima da extrema pobreza, como que no nível mais baixo da classe média, como os Victorianos lhe chamavam.


Nutton defende que o que quer que seja adoptado hoje em dia, reflecte expectativas presentes do que ser doutor é.


Galeno era um dos médicos menos típicos. Tinham um pai rico e muito influente, um estudo vasto em filosofia e tinha pacientes ricos, que ajudavam médicos a passarem de doutores a impreadores. Mas nem todos eram assim, pois nem todos tinham tido possibilidade de estudar filosofia, antes de irem estudar para os centros médicos do Mediterrâneo Este, inluindo Alexandria. Mas Galeno não era o único. Outro exemplo era Statilius Attalus, colega de Galeno em Roma, que veio de uma longa e estabelecida família de Caria, e foi um bem-feitor proeminente da sua terra natal. Quando Galeno estudou em Alexandria, também encontrou outros colegas de padrões sociais semelhantes. Para muitos, a jornada para uma grande cidade próxima, em busca de um professor devia ser sido intimidante. Muitos outros adquiriam a sua medicina dentro das famílias, entre pais, maridos e outros.

O médico ideal de Galeno, pensador, ensinado, e engenhoso, pode ser comparado com outro ideal, os médicos Cristãos anargyroi, que curavam sem troco de dinheiro, como Cosmas e Damião, dois santos que tratavam humanos e animais, faziam cirurgias, andavam às voltas pelos bairros durante semanas num determinado período, ou ficavam a tomar conta duma loja. Os seus horizontes eram muito mais localizados que os de Galeno, e o seu conhecimento divagava menos. As suas actividades locais pareciam-se mais com aqueles dos seus companheiros artesãos, do que a do filósofo Galeno, cuja experiência com animais era inteiramente apenas a disecção, segundo Nutton. Os ideiais de Galeno de um doutor como um filósofo e com um respeitável lugar na sociedade não teria sido necessariamente aceite por todos, nem mesmo pelos seus contemporâneos. O imperador Marcus Aurelius, seu paciente, elevou-o acima de um doutor típico, que não tinha nenhum poder ou importância.

Na altura, a ausência de qualquer critério legal de selecção de quem podia ou não ser chamado de doutor, justificava o facto de ser escolha individual e contexto individual o desenho de uma linha de demarcação entre aqueles que eram chamados, daqueles que se chamavam a si próprios e dos que não eram doutores. Apesar disto, em Roma particularemente, definiram-se certas práticas médicas como ilegais: envenenamento, poções de amor ou castrações, por exemplo.

Nos anos 30 A.C., foi decretada imunidade e isenção da recruta militar a todos os doutores do Império Romano, bem como outros privilégios dos impostos. Na mesma altura, Julius Caesar tinha concedido cidadania a todos os doutores que trabalhavam na cidade de Roma. Assim usufruiam de liberdade de obrigações públicas da sua terra natal. Tudo isto revela que de certa forma haveria algum tipo de regulamento desta actividade.

É importante referir contudo, que os praticantes de artes de cura raramente vinham de altos níveis da sociedade, e que em muitas pequenas cidades e vilas, haviam muitos doutores que não tinham privilégios, e cujo trabalho era visto como ao nível de cozinheiros, bailarinos e carpinteiros.




Grécia

Na Grécia Antiga não havia qualquer grau de profissionalização ou diferenciação definido, mas já havia alguma divisão de trabalho entre os que lidavam com medicamentos, ainda que rudimentar.

Denominações utilizadas para os profissionais de saúde

  • pharmakopoloi (sing. pharmakopolos): vendedores de medicamentos, além de outras funções no campo sanitário. Não tinham nem um estatuto social nem cultura elevados. Não se conhecem nem nomes nem obras suas.


  • rhizotomoi (sing. rhizotomos): cortadores de raízes. A sua importância, estatuto bem como a sua preparação e nível de conhecimento eram mais elevados que o grupo anterior. Eram um dos grupos especialistas em plantas medicinais da época, isto é, eruditos farmacobotânicos. A sua actividade reflectia o uso frequente de raízes na terapia Grega. Colecionavam raízes vegetais indígenas e vendiam-nas. Além disso, eles próprios praticavam medicina. Os seus nomes e obras vieram até nós, mostrando onde os representantes do período Hipocrático obtinham o seu conhecimento de plantas medicinais. Não eram menos importantes que as obras de Dioscórides e os fragmentos que são conhecidos contêm das mais antigas descrições de plantas medicinais.
    • Nomes associados:

Crateaus - Deixou o mais antigo conhecido herbário ilustrado. Mais tarde, as suas representações das plantas medicinais ilustraram a clássico obra De materia medica, de Dioscórides (fl. 50-70). Escreveu um texto sobre matéria médica, ao qual Dioscórides e Galeno se referiram elogiosamente.

Diocles de Carystos (séc. IV A.C.) - provavelmente o mais importante representante dos rhizotomoi, sendo considerado a fonte de todas as obras farmacoterapêuticas entre o tempo de Theophrastus e Dioscórides.


  • pharmakopoeoi (sing. pharmakopoeos): preparadores de medicamentos.


  • myropoeoi e myrepsoi: preparadores de unguentos.


  • migmatopoloi: vendedores de misturas.


  • aromatopoloi: vendedores de especiarias.


  • muropoloi: vendedores de mirra.


  • anargyroi: médicos que curavam sem receberem dinheiro em troca.


  • iatroi: médicos. A maioria pertencia ao grupo social baixo dos artesãos. Um pequeno número de médicos é que se aproximava dos estratos sociais superiores, partilhando da intimidade e do respeito da elite social grega.


Mitologia e Medicina nos Templos

A medicina ainda era de alcance limitado e era mérito científico dos melhores médicos Gregos. Por isso, afirmava-se uma grande popularidade das possibilidades ilimitadas oferecidas por várias divindades a quem as qualidades de curar eram atribuídas, como a Apollo. Asclépio gradualmente sucedeu a Apollo como o maior dos deuses curandeiros. O tratamento nos templos, como aqueles em que os pacientes ficavam à noite dentro do templo, à espera da hipótese de receberem num sonho a sua cura, directamente por Asclépio ou na forma de instruções interpretadas por intermediários, era talvez mais barato e acessível do que os serviços de um médico. Asclépio tornou-se o ideal divino para os médicos leigos, sendo ainda hoje o símbolo oficial da medicina. Poucos doutores rejeitavam a interveção divina, e muitos acreditavam num mundo organizado divinamente. Outros pareciam discordar.

Ao lado desta versão grega da medicina templária, prosperou um sistema secular de prática médica, o excelente expoente do que era a escola Hipocrática, que rejeitou a base conceptual de curar com doença.


Filosofia

Na Antiga Grécia apareceu um sistema racional de pensamento sobre os fenómenos do universo e o lugar que ser humano ocupa nele - a filosofia. Muitos filósofos ocupavam-se com artes de curar e até a praticavam, nalguns casos. O problema mais importante que estava perante estes filósofos antigos era: Que explicação racional pode ser encontrada tanto para a origem da natureza do mundo em que os seres humanos viviam como para as doenças que os atingia? Quatro filósofos gregos conceberam princípios fundamentais para estas perguntas: Empédocles, Aristóteles, Pitágoras e Demócritos.


Juramento de Hipócrates: Ética médica e estatuto social

Hipócrates é denominado o "pai da medicina" para a posteridade. O Corpus Hipocrático, cuja autoria muitas vezes lhe é atribuída exclusivamente, é um conjunto de obras de mais autores, representativa de alguns dos melhores praticantes médicos Hipocráticos do séc. V ao séc. III a.C.

Ainda hoje o nome de Hipócrates é muito associado com a primeira manifestação conhecida de ética médica. O Juramento de Hipócrates foi composto pouco depois da sua morte, não mais tarde do que o séc. IV A.C., sendo ainda hoje proferido por muitos médicos no final da sua graduação. Contudo, expressa ideias que então não eram dominantes, do sector filosófico-regligioso de Pitágoras. Os aderentes a este sector deviam ter composto o juramento. Coloca o professor como uma figura quase paternal do estudante e evidencia uma multiplicidade de curadores, como cortadores de raízes, obstetras, exorcistas, cirurgiões, e ainda a auto-medicação e intervenção divina. A escolha ficava para os pacientes, no meio deste "mercado médico". Perante esta situação, estabelecer regras para uma boa prática serviu para a ética médica, não só enfatizando as contribuições efectivas de um curador, mas distinguindo-os dos duvidosos ou da falta de prática de outros. No Juramento reflecte-se de certo modo o modo como funcionava a sociedade grega, baseada no trabalho escravo, considerando-se que o trabalhador manual cheir ourgos, era inferior àquele que se dedicasse ao culto do intelecto, como Hipócrates. Isto aparece numa parte em que se proibe o uso da faca pelo médico.



Roma

Há poucas diferenças farmacêuticas entre a antiga Grécia e Roma pois os romanos adoptaram muitos dos costumes gregos e das suas amplas ideias da medicação. A medicina em Roma era praticamente monopolizada pelos médicos gregos, geralmente humildes imigrantes. Primeiro foram levados como escravos, e depois eram homens livres, mas sempre estrangeiros. Por exemplo, Galeno e Dioscórides eram ambos originários de colónias gregas da Ásia Menor. Uma estimativa sugere que 90% dos nomes de doutores nas inscrições do séc. I do Império Romano, eram nomes gregos, e que dois séculos depois seria de, aproximadamente, 60%.

Uma listagem de alguns dos nomes que eram referidos nos livros de drogas de Galeno, dá uma indicação de uma variedade de ocupações que eram relacionadas com a saúde humana: Antonius, o vendedor de drogas; Axius, doutor na frota Britânica; Diogas, o formador; Flavius, o embalador; Orion, o preparador; Pharnaces, o cortador de raízes; Aquillia Secundilla, que é relevante da importância da medicina doméstica, e, também, do papel das mulheres nela. O nome romano Aquillia Secundilla sugere que pertencia a um nível alto da sociedade, em que o interesse intelectual na medicina seria preferível a descender à prática.


Denominações utilizadas para os profissionais de saúde

  • pharmacopoli (sing. pharmacopolus): forma latina de pharmakopoloi. Vendedores de medicamentos, drogas e cosméticos.


  • pharmacopoei (sing. pharmacopoeus): forma latinizada de pharmakopoeoi. Preparadores de medicamentos, drogas e cosméticos.


  • sellularii: do latim sellula, um pequeno lugar, e arius, pertencente a. Pessoas que tinham ocupações ou negócios sedentários, vendedores fixos de medicamentos. Também eram os chamados seplasiarii, equivalentes, provém de seplasia, rua em Capua, onde se vendiam unguentos e drogas orientais.


  • unguentarii: equivalente aos myropoeoi e myrepsoi gregos. Preparadores de unguentos.


  • aromatarii: vendedores de especiarias.


  • medicamentarii: preparadores de medicamentos.


  • pharmacotribae ou pharmacotritae: misturadores de drogas.


  • pigmentari: de pigmentum, corante, cor. Preparadores de cosméticos.


  • herbarii: vendedores de ervas.


A profissão médica tinha um estatuto social baixo e a prática da Medicina era considerada como pouco adequada para os cidadãos romanos.


Farmácia: profissões da Antiguidade e sua contextualização

Tanto na Grécia como em Roma, a necessidade de um cuidado médico organizado foi sendo gradualmente reconhecido. Desenvolveu-se um sistema de providenciar médicos "pagos" pela comunidade, que contudo, muitas vezes eram mais aliciados a cuidar das pessoas ricas. Desde que estes praticantes médicos tomaram conta da parte farmacêutica dos tratamentos, não houve reconhecimento e regulação das actividades dos farmacêuticos, contudo havia grupos de preparadores e vendedores de drogas. A divisão entre o laboratório e a responsabilidade entre o médico como o que preescreve e o farmacêutico como o agente legítimo para preparar a medicamentação e dispensá-la ao paciente, não se tinha tornado ainda um conceito reconhecido, muito menos uma realidade aceite. Talvez o mais importante para o futuro da farmácia foi o potencial criado por avanços no conhecimento de drogas e o aperfeiçoamento das técnicas e pelos métodos científicos embrionários que agora caracterizam em parte o melhor pensamento e prática médicos.

As técnicas racionais não eram suficientemente complexas nem havia um cuidado médico suficientemente maduro para separar farmácia e medicina em duas especialidades distintas. Alguns praticantes serviam tanto como médico como farmacêuticos, outros tinham um assistente farmacêutico, e outros eram ainda dependentes de negociantes especialistas para preparar alguns compostos bem como em reunir as drogas em bruto que eram necessárias.

Alguns grupos podem ter sido um pouco mais que colecionadores ou negociantes em ervas (como os rhizotomoi); outros eram meramente vendedores charlatões de esquina ( os pharmakopolos tinham essa reputação). Alguns ( os seplasiarii) permaneciam em lojas fixas a vender remédios.

O facto que estes diferentes grupos existiram sugere que durante a Antiguidade Grega e Romana não havia nenhuma profissão distinta ou classe comparável ao farmacêutico do período mais tardio.

Bibliografia

  • KREMERS, Edward et al.(1986). History of Pharmacy. 4ª Edição, American Institute of History of Pharmacy. Printed in USA.
  • Medicine In Society. (1992). Edited by Andrew Wear. Cambridge University Society.
  • NUTTON, Vivian. (2005). The Fatal Embrace: Galen and the History of Ancient Medicine. Cambridge University Press.
  • PORTER, Roy. (1996). Medicine, Cambridge Ilustrated History. Cambridge University Press.
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